Garrincha estava em evidência. Aliás, nomes são assim, gente e bichos
recebem batismo conforme a moda vigente, algum acontecimento, característica
pessoal ou animal.
Garrincha, marrom claro, pequeno porte, quase um linguiça, pernas
tortas, de onde vinha o nome.
Sentinela, uma cadelinha vira-lata, miudinha, manchada de banco e preto.
Muito perspicaz, ativa e sempre atenta. Tinha-se a impressão de que jamais
cochilava no posto. Vigia com um olho
enquanto descansa o outro, dizia meu pai. Ela dava o sinal. O parceiro acudia.
Era de se ver a felicidade da dupla quando percebiam que iríamos à roça.
Os bichos sabiam, era de praxe, quando a família toda em idade de manejar o
cabo do guatambu-meu pai, minha mãe, eu e meu irmão- se preparava para
enfrentar a empreitada. Ficavam de prontidão. Depois seguiam o trilho,
saltitantes, correndo na frente tentando adivinhar o destino.
Naquele dia, uma tarde de sexta-feira abafada, fizemos uma caminhada até
o fundo de nosso sítio, atrás do mato, descendo uma ladeira, para capinar uma
lavoura de arroz na beira de um banhado. Levávamos água e lanche. Nuvens de
mosquitos atacavam a gente. Os cães se divertiam perseguindo preás pelos
capinzais na redondeza. Depois procuravam sombras, escavando a terra para
deitar em um cantinho fresco, mudando de lugar se fosse o caso de a gente se
afastar durante a faina.
No final da tarde, como ainda não tínhamos acabado a capina do eito,
enterramos as enxadas de pé, deixando os cabos visíveis, para não ressecar o
olho com intenção de voltar no outro dia e continuar a lida. Escurecia. Saímos
rápido.
Naquela noite desabou uma chuva forte que arrefeceu o mormaço. Noutro
dia continuou chovendo. Com tempo ruim os cães ficavam recolhidos debaixo da
casa, ou nos galpões, protegendo-se da umidade. Quase não se ouvia latidos.
Domingo pela manhã, quando o tempo endireitou, e o sol apareceu, minha
mãe desconfiou: A Sentinela não está no
pátio. Não latiu essa noite nem apareceu para comer. Vai ver que se perdeu lá
no fundão atrás do mato.
Segunda-feira, com o tempo bom, voltamos à roça. Chegando ao local
encontramos a cadelinha que fez muita festa quando nós e o Garrincha apontamos.
Ela dormiu, com chuva e tudo, sobre um casaquinho velho esquecido que havia
caído junto a uma enxada. Ali estava a Sentinela, radiante, fazendo jus ao
nome. Sentindo-se salva.
Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que
ninguém se lembra: a vida... Rubem Braga
Texto muito visual, Jorge! Dá pra sentir até o cheiro de mato! Ótimo!
ResponderExcluirMuito significativo. Anda que seja apenas um conto...
ResponderExcluirHein, Bledow, Estaria Sentinela perdida, ou guardando as enxadas?
ResponderExcluirComo boa sentinela, guardando as enxadas!
ResponderExcluirBravo! Bledow em sua melhor forma!
ResponderExcluirAbração, Rubem