domingo, 27 de agosto de 2017

Garrincha e Sentinela



          Garrincha estava em evidência. Aliás, nomes são assim, gente e bichos recebem batismo conforme a moda vigente, algum acontecimento, característica pessoal ou animal.

          Garrincha, marrom claro, pequeno porte, quase um linguiça, pernas tortas, de onde vinha o nome.

          Sentinela, uma cadelinha vira-lata, miudinha, manchada de banco e preto. Muito perspicaz, ativa e sempre atenta. Tinha-se a impressão de que jamais cochilava no posto.  Vigia com um olho enquanto descansa o outro, dizia meu pai. Ela dava o sinal. O parceiro acudia.

          Era de se ver a felicidade da dupla quando percebiam que iríamos à roça. Os bichos sabiam, era de praxe, quando a família toda em idade de manejar o cabo do guatambu-meu pai, minha mãe, eu e meu irmão- se preparava para enfrentar a empreitada. Ficavam de prontidão. Depois seguiam o trilho, saltitantes, correndo na frente tentando adivinhar o destino.

          Naquele dia, uma tarde de sexta-feira abafada, fizemos uma caminhada até o fundo de nosso sítio, atrás do mato, descendo uma ladeira, para capinar uma lavoura de arroz na beira de um banhado. Levávamos água e lanche. Nuvens de mosquitos atacavam a gente. Os cães se divertiam perseguindo preás pelos capinzais na redondeza. Depois procuravam sombras, escavando a terra para deitar em um cantinho fresco, mudando de lugar se fosse o caso de a gente se afastar durante a faina.

         No final da tarde, como ainda não tínhamos acabado a capina do eito, enterramos as enxadas de pé, deixando os cabos visíveis, para não ressecar o olho com intenção de voltar no outro dia e continuar a lida. Escurecia. Saímos rápido.

         Naquela noite desabou uma chuva forte que arrefeceu o mormaço. Noutro dia continuou chovendo. Com tempo ruim os cães ficavam recolhidos debaixo da casa, ou nos galpões, protegendo-se da umidade. Quase não se ouvia latidos.

         Domingo pela manhã, quando o tempo endireitou, e o sol apareceu, minha mãe desconfiou:  A Sentinela não está no pátio. Não latiu essa noite nem apareceu para comer. Vai ver que se perdeu lá no fundão atrás do mato.

         Segunda-feira, com o tempo bom, voltamos à roça. Chegando ao local encontramos a cadelinha que fez muita festa quando nós e o Garrincha apontamos. Ela dormiu, com chuva e tudo, sobre um casaquinho velho esquecido que havia caído junto a uma enxada. Ali estava a Sentinela, radiante, fazendo jus ao nome. Sentindo-se salva. 

          Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida... Rubem Braga

5 comentários:

  1. Texto muito visual, Jorge! Dá pra sentir até o cheiro de mato! Ótimo!

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  2. Muito significativo. Anda que seja apenas um conto...

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  3. Hein, Bledow, Estaria Sentinela perdida, ou guardando as enxadas?

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  4. Como boa sentinela, guardando as enxadas!

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  5. Bravo! Bledow em sua melhor forma!
    Abração, Rubem

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