sexta-feira, 3 de abril de 2020

ADIVINHA QUEM VAI PASSEAR?


Hoje ao mexer nas minhas coisas no armário, vi a bolsa do material de esporte atirada no fundo. É a bolsa onde levo tênis, meias, calção, colete, sabonete, canela de velho, estas coisas para o futebol e o banho.

Sim claro! Estou com 62, e, em sendo idoso, não posso sair à rua sem justificativa. Com a quarentena o futebol está suspenso há mais de duas semanas. E eu, louco prá uma bolinha. Mas que nada, estamos presos em casa e a bolsa presa no armário mofando num canto. Este vírus está afetando a nossa vida inclusive o exercício físico.

Dormir, comer, whatsapp, um pouco de leitura e televisão, tem sido a minha vida. Se eu estou ficando chateado, imagino que todos estão de saco-cheio. Inclusive a bolsa!

Procuramos não sair de casa mas, tem coisas pessoais intransferíveis e inadiáveis. Idosos, eu e a patroa, temos que tomar a vacina contra a gripe. Como fico ouvindo notícias, ela me consultou e eu solícito:

- Como estão as filas prá vacina hoje?

Tive uma brilhante ideia na hora.

- Hoje está mais tranquilo. Lá na farmácia da Juca Batista, ouvi dizer que em torno de 4 e meia-5 horas, está vazio. (Psit! Horário da pelada ... fala baixo).

- Ótimo, respondi, já trocando ideias com meus botões.

Jogamos nas segundas e quintas-feiras, sempre a partir das 16:30. Sim, todos aposentados e a maioria mais velhos do que eu. Hoje é quinta. Tenho um plano: Enquanto minha mulher vai na farmácia, mandei ela longe, eu me fardo, pego a bolsa e de carro dou uma voltinha na rua.

Eu tenho que me cuidar da patroa, ela acha que estou batendo pino, meio lerdo, esquisito às vezes. Noutro dia ela implicou comigo e me acusou de estar falando com as plantinhas no jardim.

- Eu. Eu não. Elas que falam comigo.

 Ficou ainda mais preocupada comigo. Me marcando em cima. Isso que eu não sou de beber, de voltar tarde, ficar na resenha. Não tenho depressão. Procuro ficar quieto no meu canto pensando histórias para escrever. Tá bem, as vezes exagero um pouco. Mas é só isso.

Quando foi umas quatro e pouco minha mulher saiu, não sem antes me recomendar:

- Fica em casa meu bem!

- Não te preocupa. Te cuida querida!

Apanhei a bolsa, já tinha deixado tudo organizado e fui me fardar. Não me continha e narrava tudo em voz baixa.

- Adivinha quem vai passear hoje?

Juro por tudo, que eu ouvi o tênis soltar um suspiro de satisfação. Ou será que foi o calção? Bom isso não interessa – tenho que me fardar logo.

Coloquei a cueca, o calção preto, o colete dupla-face, vermelho e azul, com o número 17 nas costas, não tenho ideia do porquê, peguei os meiões, ah! Há quanto tempo eu não vestia meias. Amassei-as, cheirei uma, depois outra, estique para vestir.  Por último calcei o tênis preto. – Oh tênis goleador! Elogiei. Para entrar no clima peguei o frasco de canela de veio e esfreguei nas coxas, as canelas, tudo. Aí sim entrei no clima. Cheiro de veio e remédio combina. Tudo a ver com pelada!

A minha ideia era sair rápido. Dar uma volta no bairro, ver as ruas, as pessoas, conversar com o fardamento, com a bolsa, tudo isso sem sequer abrir o vidro do carro para não correr risco de ser contaminado e voltar para casa antes da patroa. Banho tomado, roupas na máquina, ela nem iria desconfiar. Claro, não posso decepcionar nem descumprir ordens severas.

Sai dando bico com a ponta das chuteiras no pneu. O trânsito estava bom. Fui apreciando a cidade, leve e solto fazendo comentários, ouvindo as notícias no rádio e eventualmente respondendo aos meus amigos de carona. Quando me dei por conta estava em frente a cancela no clube. Procurei a carteira de associado, faz dias que não uso, e estendi o braço pro porteiro. Ele me olhou com uma cara estranha.

- Jogar bola, seu Jorge?


-O clube está fechado, meu amigo.

Foi aí que me dei conta que errei o caminho.

- Quero falar com o presidente – me saí bem.

- O presidente não está. Com o vírus solto ele vem só de vez em quando.

- A é? Então vou prá casa.

Voltando fui avaliando minha atrapalhação. Senti que fui mal. Quando sai à tarde, estava no automático, fui direto pro clube em vez de dar uma voltinha no bairro, culpa do carro que está acostumado com o destino. Andei mais longe e levei mais tempo do que o previsto. Portanto, eu deveria apressar a volta para chegar em casa antes da minha mulher.

- Como vou explicar? O que vou dizer?

Cheguei. A patroa chegou logo depois, quase juntos, não deu para disfarçar. Eu ali, como menino que fez arte. E a fera me olhando. Ou a bela?

- E essa roupa. Foi jogar bola?

Pergunta boba! Resposta boa, pensei. – Não estás vendo que fui levar os meiões para passear?

            Porto Alegre, 02 de abril de 2020.
JORGE LUIZ BLEDOW –  E-mail  bledow@cpovo.net

4 comentários:

  1. Sensacional, q saudade do nosso futebol. Abraço

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  2. Muito bom⚽️⚽️⚽️👍👍👍

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  3. Ótima crônica, muito divertida. Outro dia a patroa tb me pegou falando com as plantas. Só que ela levou na esportiva, saiu dando risada com o gato.

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