Um dos bois, o Pintado, foi criado no terreiro desde bezerro. Era filho da mansinha com um touro da vizinhança. Terneiro forte, ossudo, manso, meio lerdo, de couro grosso. Tinha muita força e ouvido apurado. Um defeito: era roceiro, isto é, não parava no potreiro. Como tinha pele espessa não se importava com o arame farpado, ia se encostando com a barriga de lado, forçando até a cerca ceder.
O Palhaço era mais ligeirinho. Meio divertido, daí o nome. Fora “briqueado” de um vizinho (como os bichos são diferentes de gente, pois esse vizinho era um chato), a troco de fios de cobre, um pouco de lenha e algum dinheiro. Certamente meu pai pagou caro, pois não era de pechinchar. Achava feio. Seria duvidar da palavra do vendedor, no caso um vizinho honrado.
A junta se formou e durante anos trabalhamos com ela. Carroça, arado, moenda de cana e tudo mais que fosse necessário. Eu devia ter 8 ou 9 anos de idade. Do Palhaço não ficou muita coisa, até porque com a idade foi ficando triste. Não sei a causa. Mas o Pintado deu trabalho. Era minha a obrigação conduzi-lo ao pasto pela manhã, recolhe-lo à sombra e dar água ao meio-dia, ao pasto à tarde e à estrebaria à noite. Preso pela cabeça, na volta dos chifres, uma corrente fixa e nesta outra mais fina e longa com a qual eu o amarrava às estacas, árvores, palanques, onde havia pasto. Lembro que em tempos de seca conduzia-o para a borda da mata onde havia criciúmas, cujas folhas ele adorava. Uma tarde, ao desenrolar a corrente, estando próximo dele, levantou e baixou a pata para espantar alguma mutuca, decerto. Neste momento meu pé ficou debaixo do casco. Por mais que eu batiesse e reclamasse, o animal não se movia. Já impaciente, houve um momento em que levantou a pata e tirei meu pé. Ainda bem. Sorte minha que o húmus fofo na borda da mata reduziu a chance de me machucar. Imaginem um peso de 500 quilos amassando meu pé? Nessa idade não tinha forças para conduzi-lo. O boi me conduzia, pois já conhecia a rotina e o caminho para o pasto, água e a estrebaria. Depois de alguns anos os bois foram vendidos.
Certa noite, meu pai voltou tarde. No escuro deixou os “terneiros” pastando em volta do galpão. Ao entrar em casa anunciou o negócio – Comprei uma junta de boizinhos dum caboclo da Linha Salãozinho, criados na volta do rancho. São bem mansos e ensinados e já tem nomes. Curiosos, eu, meu irmão e minha mãe, com a lanterna a querosene, fomos conhecer os bichos.
Ao voltarmos perguntamos – Qual o nome pai? - Figueiro e Coração.
No outro dia veio a explicação. O Coração era pintado de branco e preto e com uma mancha no meio da testa no formato de um coração. Daí o nome. O Figueiro tinha este nome, pois como diz a crença, quando um animal tem verrugas reza-se três vezes, por três dias seguidos, lava-se com chá erva-santa o local afetado e põe-se o nome de Figueiro ou Figueira. Em três dias caem as verrugas e o animal fica com este nome. Se trocar o nome voltam às verrugas. Azar de quem tiver mais bichos com esse problema. Vai ter um potreiro cheio de Figueiros e Figueiras e certamente vai dar confusão.
Dias depois descobrimos que o Figueiro, branco com manchas grandes alaranjadas, não era tão manso. Avançava nos guris. Só respeitava o pai. Dava guampeadas e corria atrás de nós no potreiro. O Coração, por sua vez, era a própria bondade. Muito lavrei com esta junta. Fugiram uma vez com a carroça espalhando a carga toda pelo estradão. Só pararam em frente ao engenho do vizinho, onde de vez em quando íamos moer cana para fazer melado. Certa feita meu pai viajou, pedimos ajuda para “embrochar” os bois para que pudéssemos trabalhar. Avisamos de que o Figueiro não era de confiança. O vizinho fez pouca conta. - É um terneiro, já enfrentei bicho brabo e forte. Até touro brasino de campo da fronteira já capei.
Tudo correu bem até a hora de “dessembrochar” os bois. Não é que o bicho deu uma cabeceada rasgando as calças do vizinho com as guampas. Foi engraçado, de calças rasgada ficou envergonhado e foi prá casa de mansinho.
Certo dia eu tirei os bois da canga. Já estava com muitos anos. Havia descoberto um jeito de não levar chifradas. Encostava-os num poste do galpão, prendendo o ajojo na guampa furada e amarrando na escora da quina. Assim o Figueiro não conseguia guampear. Depois, por detrás do poste, porteira aberta e relho na mão, eu soltava ele atropelando-o para o potreiro. Certo dia, assobiando e cantando, já passando do meio-dia, com pressa, larguei os dois no cercado. Lá pelas três da tarde ouvimos o Coração mugir agoniado atrás do galpão. Fomos ver. Estava de bornal o pobre bicho. Na pressa eu esqueci e larguei-os sem tirar o equipamento de arame em volta da boca que serve para eles não comerem na roça enquanto trabalham. Coitados dos bichos passaram horas com fome e sede. Procuramos o Figueiro e ele havia esfregando o focinho numa árvore e arrancando o bornal. O Coração, mais dócil, não consegui. Por anos e anos tive que ouvir a chacota além da culpa em meu coração de colono. Ameaçavam botar o bornal e me deixar sem água e comida para sofrer como boi. Até hoje não posso ver bornal que me dá agonia.
Começando os animais a envelhecerem tratamos de renovar à junta. Nasceu um mestiço zebu. Tinha uma cor acinzentada-baio-escura. O pescoço era largo e forte, com cabeça grande. Couro grosso, ossudo nas paletas e com traseiros mais finos. Caminhar lerdo, e elegante. Parecia um rei. Não tivemos dúvidas e o batizamos de Leão. Precisávamos de um parceiro. Então meu tio nos vendeu outro mestiço. Tinha fogo nas virilhas, couro fino, pernas longas e esbeltas, caminhar desconfiado e ligeiro. Cor baio-clara. Foi logo batizado de Baíto. Gostava de saltar à cerca. Durante algum tempo usou cangalha.
Essa junta trabalhou conosco durante alguns anos. Eram fortes e formavam um equilíbrio. O Leão lerdo. Baíto ligeiro. Só de ameaçar o relho Baito já pulava para frente. O Leão precisava de uma sacudida de açoiteira de vez em quando. Cresceram, a nossa roça aumentou e os bois davam conta do arado, da carroça, de arrastar toras e outros serviços em casa e na vizinhança. Quem mais manejava com eles, quase sempre era eu. Tinha a obrigação de cuidá-los, providenciar pasto extra e água a vontade. Em compensação, como sobrava energia, minha e dos bois, lavrava prá fora. Trabalhava por dia e faturava duas diárias, uma dos bois e uma minha. Foi nesta época que mais ganhei dinheiro na minha vida. Gastei com bailes, futebol e outras diversões. Investi numa pantalona, uma camisa de malha cor de laranja e um par de sapatos com fivelas. Aproveitei também para comprar um desodorante, óleo para cabelos, espelhinho com foto de mulher pelada, um pente de osso e uma carteira com divisórias, tudo para carregar no bolso. Não adiantou muito. Não arrumei namorada firme e muito menos casei. Botei dinheiro fora. Ou não?
No ano em que completei 19 anos de idade fui para o quartel. Os bois ficaram a cargo do meu irmão que ficou no lucro. Além das diárias extras e da roça plantada para colher, eu com cabelos de recruta, ele herdou espelhinho, óleo e pente. Ah sim! Eu ia esquecendo da bicicleta monark reforçada, quase nova que dava bem para carregar umas “guria”.
Será que ele carregou alguma moça na monark aro 26 de varão reforçado?
Ler as crônicas do Bledow nos faz viajar a nossa infância. sensação de estar vivendo naquele momento e assistindo as cenas desta bela narrativa. Obrigada.
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