Todos nós temos nosso primeiro dia
de aula, marcante ou não. Está nas nossas lembranças, com mais ou menos
detalhes, com ou sem elementos importantes, mas no meu caso, o que eu acho
diferente e que foi marcante, não a aula em si, mas os elementos que cercaram
esse dia. E mais, a turma. Tornou-se um dia muito especial, uma situação
particular.
Município de Três Passos,
localidade de Esquina Progresso, Escola Municipal Rural Padre Feijó, professora
dona Juraci Della Flora, março de 1965.
Eu tinha seis anos, em abril
completaria sete. Lá fora os pais só mandavam os filhos para aula com sete anos
completos. Ou seja, por esta lógica eu iniciaria apenas no ano seguinte. Como
eu era o mais velho de casa, já tinha lápis e caderno, muita vontade de ir à
aula, meus pais conversaram com a professora e decidiram me matricular. E tem
mais, eu sabia falar português! Estranho, não é? Falar português?
Nesse tempo, nessa localidade, a
língua de berço era o dialeto alemão e poucos alunos falavam o português aos
sete anos. Aprendiam na escola porque em casa os pais só falavam alemão. Nesse
caso eu levava uma vantagem em relação aos outros, com a linguagem. Na verdade,
nos primeiros dias eu servia de intérprete entre a professora, uma italiana e a
grande maioria de meus colegas que não sabiam nem pedir água em português.
Tinha uma coisa: em uma semana aprendiam. Quer dizer, aprender mesmo não
aprendiam, mas, pelo menos dava para se comunicar na língua oficial do país.
Durante muitos anos continuou assim, hoje certamente está mudado.
Lembro-me, logo nos primeiros dias,
dona Juraci passou-nos um tema no caderno de cópia, aquele com linhas. Mais
tarde veio passar outra tarefa mais abaixo. Como o meu parceiro de classe, eram
daquelas carteiras duplas onde o banco basculava e que na mesa tem um buraco
para o tinteiro, não entendia o português e ainda não havia terminado o tema
superior, antes que eu interviesse perguntou: - Tô unã? (Aqui embaixo?). Todo mundo
ouviu e riu. O apelido dele até hoje é Tô unã. São essas situações diferentes,
simples e exóticas que aconteciam quase que diariamente na sala de aula.
Muita coisa a professora passava a
entender em alemão, mas como na escola era o local de se aprender o português
ela insistia. Que trabalho, heim? Parece impossível, mas aprendíamos. Como o
prédio da escola era um só, as turmas ficavam lado a lado, o que dificultava
ainda mais à condução das aulas. Havia duas professoras, uma das primeiras e
segundas séries e outra das terceira, quarta e quinta séries do primário, era
assim que se chamava. Falo em primeiras séries, porque havia uma diferenciação.
Havia uma primeira série “A” e “B”. Pelo seguinte, logo que os alunos entravam
para escola, eles não eram matriculados oficialmente e só assistiam às aulas
principalmente para aprender se comunicar em português. O que valia mesmo era o
primeiro ano “A”. Este era oficial e era cursado no ano seguinte. Provavelmente
os professores usavam este estratagema devido ao fato dos exames de fim de ano
ser montados pela Diretoria Municipal de Ensino, hoje Secretaria. Sendo assim,
os alunos tinham que estar bem preparados para não reprovarem no fim do ano, já
que às provas eram padronizadas e vinham prontas da cidade. Era para testar o
conteúdo ministrado.
No meu caso comecei
como aluno do primeiro ano “B”, “B” de burro, como nos chamavam. Mas como eu
falava o português e aprendi a ler e escrever rapidamente ainda deu tempo de me
matricularem oficialmente, naquele mesmo ano, ou seja, no primeiro ano “A”, “A”
de adiantado. Sendo assim eu sempre era no mínimo um ano mais novo que meus
colegas. Isto criava algumas dificuldades na hora do recreio, pois para jogar
bola ou brincar de pega-pega preferiam os mais fortes. Mas eu compensava essa
deficiência pelo lado do aprendizado. Acho que sempre fui um bom e interessado
aluno. Deve ter sido difícil, mas com o esforço e dedicação da dona Juraci, eu
consegui vencer as dificuldades e seguir em frente sem nunca rodar de ano.
O que me chateava muito na escola,
era o fato de morarmos perto. Uns 300 metros. Assim não levávamos merenda para
a hora do recreio, pois nossa mãe preferia que fôssemos a casa nessa hora fazer
um lanche. Que ruim para nós, perdíamos grande parte das brincadeiras, que eram
uma das grandes razões para irmos à aula.
Fiz do primeiro ao quinto ano e aí
terminava o que à escola oferecia. Como então eu só tinha dez anos de idade e
meu pai achou que eu estava muito novo para trabalhar o dia inteiro na roça,
matriculou-me novamente para repetir o quinto ano enquanto que no outro
meio-dia, desde os oito anos de idade, eu trabalhava duro na lavoura. Pensam
que foi barbada, não foi tão fácil assim, trocaram o professor e o substituto
era um seminarista durão. Invocava-se com a forma desleixada que falávamos o
português e tentou corrigir nossa pronúncia. Os erres eram o principal
problema, pois falávamos como se fosse com um erre só, um erre fraco.
Imaginem se já é difícil
alfabetizar alunos normais. Agora imaginem alfabetizar alunos que veem à escola
só falando o alemão! É difícil!
Minha primeira professora é uma
heroína, e merece todo nosso respeito e carinho! Obrigado dona Juraci! Muito
obrigado! Só tenho a agradecer.
PS. Agora maio de 2016,
a querida professora Juraci faleceu.
Bledow, que heroica tarefa: alfabetizar e introduzir a alemoada no português... RIP Dona Juraci. Mesmo sem a conhecer, admiro.
ResponderExcluirAbração, Rubem
Bledow, a Dona Juraci é mais um exemplo dos milhares de professores que formaram os cidadãos desse nosso Brasil. Bela maneira de homenageá-la.
ResponderExcluirNoelson
Compactuo com os comentários anteriores. Como deve ser difícil para uma professora alfabetizar em uma língua estranha para os alunos. Essas heroínas merecem todo nosso respeito e admiração.
ResponderExcluirNossas primeiras professoras jamais esquecemos.
A minha foi a Dona Marlene. Eu já tinha 7 anos. Muito aprendi... e continuo burro... mas persistente.
Parabéns e obrigado pela reflexão...